Resenha Crítica do filme “Lincoln”, de Steven Spielberg

Érica Corado
11 min readMar 18, 2021

O filme Lincoln, um Drama-Histórico dirigido por Steven Spielberg e roteirizado por Tony Kushner, se baseia na biografia Team of Rivals: The Genius of Abraham Lincoln, escrita pela historiadora vencedora do Pulitzer Doris, Kearns Goodwin, e retrata o clima político dos Estados Unidos no ano de 1865, durante a Guerra Civil Americana. Lançado no ano de 2012, o filme foi coproduzido pela DreamWorks Pictures e Participant Media. A obra foi recordista em indicações ao Oscar 2013, onde aparece ocupando uma vaga de 12 categorias distintas — das quais ganhou duas: Melhor Ator (Daniel Day-Lewis) e Melhor Direção de Arte. Além disso, foi indicado para sete Globos de Ouro, dos quais ganhou o prêmio de Melhor Ator (Daniel Day-Lewis).

A direção de Spielberg traz um grande peso à trama, sendo ele considerado um dos cineastas mais populares e influentes da história do cinema. Durante sua carreira, dirigiu obras como Schindler’s List — com o qual ganhou o Oscar de melhor diretor em 1982 -, Saving Private Ryan — ganhador do Oscar de Melhor filme no ano de 1998 — Jurassic Park (1993), Catch Me If You Can (2002), War of the Worlds (2005), entre diversas outras. É também o diretor com mais filmes na lista dos 100 Melhores Filmes Americanos de Todos os Tempos, da American Film Institute.

Nesse sentido, Lincoln se passa no último ano da Guerra Civil Americana e está centrada nas tensões políticas dentro do Congresso americano acerca da aprovação da 13ª ementa, que colocaria fim à escravidão no país, defendida pelo então presidente Abraham Lincoln, interpretado pelo irlandês Daniel Day-Lewis. O embate se dava sobretudo entre Republicanos, que em sua maioria eram a favor da aprovação da ementa, e Democratas, que eram contrários à medida.

O filme, portanto, trata de um momento extremamente delicado na história americana que representou importantes mudanças na sociedade do país. Deste modo, para compreendê-lo inteiramente é necessário entender o que estava acontecendo no país naquele momento e porque existia tal divisão política.

A guerra civil teve início devido a uma grande polarização entre duas regiões do país — Norte e Sul. Isso se deu devido às divergências gritantes nas estruturas sociais, políticas e econômicas de cada uma. Nas palavras de Santana da Silva (2014) “havia duas nações em uma”. No Norte, se desenvolvia uma sociedade e economia mais modernas, diversificadas e com maior concentração urbana. Havia um comércio e indústria crescentes, além de um grande fluxo de imigrantes europeus que vinham tentar a sorte no Novo Mundo, chegando a portos como Boston e Nova York. No campo, utilizava-se do trabalho assalariado e de concentração familiar distribuídos em pequenas e médias propriedades.

Em contrapartida, no Sul, existia uma sociedade predominantemente agrária, com enormes latifúndios monocultores — os plantations — suportados pelo trabalho escravo e com a economia voltada para a agro exportação e, consequentemente, dependente. Nesse contexto, o Sul construía uma sociedade extremamente elitista, com mais interesse na Europa do que nos ‘irmãos’ do Norte. O modelo apresentava diversas semelhanças com aquele aplicado na América Latina.

É fato que um país não conseguiria manter-se estável com dois modelos socioeconômicos completamente opostos em vigência. Apesar de a Constituição de 1787 — que estabelecia um modelo federativo e propunha artigos de ampla interpretação — e também arranjos políticos temporários terem permitido estes modelos coexistirem por décadas, alguns políticos já entendiam que este sistema tinha data de validade, um deles o próprio Lincoln, que afirmou que “uma casa dividida contra si mesma não subsistirá. Acredito que esse governo, meio escravocrata e meio livre, não poderá durar para sempre… e ele se transformará só numa coisa, ou só noutra”.

Nesse sentido, ao longo do século XIX, começaram a surgir pontos de tensão entre as duas regiões, como em relação às políticas tarifárias, distribuição de recursos e emissão de papel moeda. Além disso, o Norte tendia a propor leis em âmbito federal e uma política alfandegária de cunho protecionista, enquanto o Sul defendia maior autonomia para os estados e tinha seus interesses voltados ao livre-cambismo. O maior problema, no entanto, era, sem dúvidas, a questão da escravidão. O Norte em geral era abolicionista, enquanto os sulistas defendiam o direito à exploração da mão de obra escrava em sua estrutura social.

Outro ponto de tensão foi a Marcha para o Oeste, devido à disputa em relação a qual modelo os novos estados agregados à federação iriam seguir. As discussões sobre esse assunto geraram conflitos violentos. Na tentativa de solucionar o problema foram assinados os Acordos de Missouri, que determinava que os novos estados seriam divididos de acordo à latitude 36’ 30”. Deste modo, os estados localizados ao Norte deste ponto seguiriam o modelo nortista e aqueles localizados ao sul, o modelo sulista.

Entretanto, a partir da década de 50 do século XIX, esses acordos foram abandonados. O crescimento demográfico no Norte levou a região a ter maior influência política e maior poder de barganha. Tal fenômeno era perceptível na Câmara dos Representantes e tinha seus eleitos proporcionais à população de cada estado — que era dominada pelo norte. A influência do Norte levou a Califórnia, por exemplo, a ser integrada ao país nos modelos nortistas, mesmo estando localizada abaixo do paralelo 36’. Para resolver a problemática dos novos estados, foi deixado nas mãos dos habitantes a escolha de qual modelo seguir, através da lei Kansas/Nebraska, porém a lei causou ainda mais violência e conflitos.

Nesse contexto de constante tensão no país, surgiu o partido Republicano, com clara orientação abolicionista nos moldes do Norte. O partido ganhou influência rapidamente e ganhou espaço relevante, tanto na Câmara, como no Senado. Assim, os republicanos chegaram com força para as eleições de 1860 e elegeram Abraham Lincoln com 40% para presidência, apoiado por todos os estados do Norte e dois estados do Oeste.

A eleição de Lincoln não foi bem recebida pelos sulistas, que viam o republicano como uma ameaça a seu estilo de vida. Antes mesmo da posse do presidente-eleito, onze estados do sul — Carolina do Sul, Alabama, Arkansas, Carolina do Norte, Flórida, Geórgia, Louisiana, Mississippi, Tennessee, Texas e Virgínia — decidiram declarar o desmembramento dos Estados Unidos (União), criando um novo país, os Estados Confederados da América. Apesar das tentativas de negociação, os nortistas, não obtiveram sucesso no restabelecimento da União e os estados do Sul ainda insistiam na ideia de serem independentes dos Estados Unidos. O Norte não aceitou a secessão e, assim, a guerra estourou em 21 de abril de 1861.

Lincoln passou, portanto, os quatro anos do seu primeiro mandato lidando com a complexidade da guerra no país. O conflito teve início para impedir a secessão dos estados do Sul, ou seja, não tinha o objetivo de pôr fim na escravidão como central. Entretanto, em 1863, o presidente proclamou o Ato de Emancipação, Ato de Emancipação, libertou os escravos nos Estados Unidos, que dava liberdade aos escravizados em zonas de guerra. Apesar das limitações do ato por ser uma medida militar, foi uma decisão importante para os rumos da guerra, pois muitos dos escravos libertos passaram a apoiar a União e lutar ao seu lado.

Desta maneira, a guerra passou a ter um propósito maior, envolvendo aspectos ainda mais delicados da sociedade americana. O Estados Unidos retratado no filme de Spielberg é uma nação extremamente polarizada com duas visões de mundo completamente diferentes tentando se sobrepor. No ano de 1865, com a guerra rumo a seu fim, Lincoln considerava crucial a aprovação da 13ª Emenda até janeiro, pois temia que a Proclamação de Emancipação fosse invalidada pelos tribunais quando a guerra acabasse, escravizando novamente os negros libertos.

A aprovação da Emenda necessitaria de 3/5 de votos favoráveis para sua aprovação. Por isso, os republicanos mais radicais temiam que a medida não fosse aprovada devido às divisões dentro do Congresso. Muitos republicanos mais moderados, em especial aqueles das regiões de fronteira, acreditavam que as negociações para pôr um fim definitivo à guerra eram mais importantes naquele momento. Além disso, o principal ponto de inflexão seria a falta de apoio da ala democrata para a aprovação da medida. Diante dessa situação, muitos dos assessores de Lincoln acreditavam que seria melhor esperar até que os republicanos tomassem posse de suas novas cadeiras no Congresso para que a medida passasse com mais facilidade, já que o partido Democrata tinha perdido espaço nas eleições de 1864. Entretanto, como já abordado, Lincoln não acreditava que esse seria o melhor caminho. Para o presidente, a questão da escravidão teria que ser resolvida antes que a guerra acabasse e os estados do sul fossem restabelecidos à União.

O longa-metragem, então, retrata todos os esforços políticos implantados por Lincoln para a aprovação da Emenda, que em muitos momentos envolveram barganha e corrupção. A figura do presidente, em diversos momentos é representada de maneira anti-heroica, assim como dos outros políticos envolvidos no processo. Os debates entre o presidente e Francis Blair — o fundador do partido republicano — e o então Secretário de Estado William Seward deixam isso claro. Lincoln é obrigado a conversar com grupos opostos e conflitantes e barganhar oferecendo cargos federais para os Democratas que haviam perdido as últimas eleições e ficariam sem espaço no governo. Além disso, usa de argumentos puramente ideológicos e omite informações fundamentais sobre o transcorrer da guerra.

Outra figura importante no filme é o republicano radical Thaddeus Stevens (Tommy Lee Jones), que não só defendia o fim da escravidão, como a igualdade racial completa entre brancos e negros. Essa pauta é extremamente mal vista pelos outros políticos no plenário, mostrando que a abolição da escravidão não significava a vontade de inserir os negros na sociedade americana. A aprovação da Ementa, para muitos, se tratava apenas de ‘politicagem’.

Para mais, o filme também aborda os conflitos familiares enfrentados por Lincoln durante todo esse processo, envolvendo, principalmente, seu filho mais velho, Robert, e sua esposa, Kushner. Apesar de tratados em segundo plano, esses conflitos quebram o constante cenário de mesas de negociação durante o filme que carregam sempre um tom mais monótono.

Assim, Lincoln é um filme lento, mas que aborda os lados mais cinzentos da política, onde coloca a figura do presidente Lincoln em uma linha tênue entre herói e aproveitador. É um retrato puro da realidade política e de suas complexidades. O presidente é descrito com uma incrível habilidade política de negociação, utilizando de estórias para convencer os outros a seu redor de seus pontos, sempre com paciência, apesar de uma constante aparência de cansaço. Nas palavras de Thaddeus Stevens durante o filme a 13ª ementa foi “A maior medida do século XIX aprovada entre corrupção, ajudada e instigada pelo homem mais puro da América” e é uma boa maneira de resumir o que o filme representa.

O longa-metragem é essencialmente político, onde a guerra passa a ser apenas um plano de fundo de contextualização dos acontecimentos. Não há muitas cenas de guerra ou violência, apesar das mais de 600.000 mortes causadas pelo conflito. Assim, são postos diálogos longos que focam mais no campo da razão do que da emoção. Por isso, em alguns momentos o filme se torna de difícil compreensão para aqueles que não têm um olhar atento ao que é dito.

Um dos maiores pontos positivos do filme é mostrar como o projeto tão polêmico, conseguiu ser aprovado usando do voto de vários parlamentares em um curto espaço de tempo. O filme mostra que isso se deu não só pela habilidade política de Lincoln, mas em grande parte por interesses individuais dos parlamentares, mostrando como muitas decisões políticas importantes são tomadas em acordo a perspectivas pessoais do que é melhor para si mesmo, não para a sociedade em geral. A falta de interesse — e repressão total — em projetos de inserção do negro na cidadania americana é a prova disso. Os jogos políticos deixam de ser romantizados e enfatizam o lado corruptível do ser humano.

A Emenda foi aprovada com uma curta margem. Em 09 de abril de 1965, com a rendição do General Lee, líder dos confederados, a guerra finalmente acabou. Sem dúvidas, a guerra de custos astronômicos e que tirou a vida de milhares deixou profundas marcas na sociedade americana. Entrando Lincoln não pode ver os desdobramentos deste acontecimentos, pois foi assassinado dias depois, em 15 de abril, mas se tornou um dos nomes mais importantes para a história americana e do mundo.

Contudo, é fato que a abolição não foi a solução do problema racial nos Estados Unidos. Na verdade, este permanece sendo um ponto de incisão dentro da sociedade americana com poucas perspectivas de ser sanado em curto prazo. A aprovação da 13ª Emenda foi apenas um pequeno passo diante da profundidade dessa problemática.

Após o fim da guerra, os estados do Sul confederado foram tomados por tropas da União e os governos comandados por interventores federais, em sua maioria oficiais da União por mais de uma década. Não houve uma implementação factual de uma reconstrução destes estados e muitas famílias ficaram em situação de miséria sendo explorada pelos capitalistas do Norte. Tal situação criou um forte ressentimento por parte dessa população em relação à guerra.

Assim, os negros conseguiram a liberdade e igualdade de direitos, porém foram criadas diversas leis nos estados sulistas para impedir a participação do negro na vida política, que ficaram conhecidos como blackcodes. Quando não eram impostas através de medidas legislativas, era por meio da violência pura. Além disso, surgiram grupos terroristas contra as comunidades negras, como a Ku Klux Klan, que praticavam chacinas e mais atos de violência. A partir da década de 1870, a grande maioria dos estados do Sul criaram medidas para tornar os negros cidadãos de segunda classe.

A abolição da escravidão foi, sem dúvidas, uma vitória. Mas, é apenas a ponta do iceberg que é o problema racial nos Estados Unidos, como já abordado. Já no século XXI, em 2020, 155 anos após a libertação dos negros, o país passava por protestos massivos contra a violência policial direcionada à comunidade negra, os assassinatos, prisões injustas, desigualdades. Eram protestos contra o racismo institucional e estrutural. O estopim foi o assassinato de um homem negro, George Floyd, por policiais brancos, sem razões plausíveis para o ato. A sociedade americana ainda está doente, prova de que a escravidão deixa cicatrizes eternas e que breves alterações na Constituição não são suficientes para estancar o problema. A abolição da escravatura muito pouco se tratava de garantia de direitos ou igualdade racial.

Sendo Assim, Lincoln é um filme que instiga a reflexão do problema racial e suas reais profundidades. É uma trama séria, em alguns momentos carregando diálogos complexos, mas que deixa o telespectador interessado no que é discutido. O aspecto mais interessante da obra é, sem dúvida, a ‘desromantização’ da história, onde os personagens retratam tanto o sentimentalismo humano, como o egoísmo, além da realidade de como se dão os processos políticos, que nem sempre envolvem o que de fato é melhor para a sociedade, mas sim quais interesses estão sendo postos em jogo.

As atuações são outro ponto positivo. Lee Jones e Sally Field incorporam seus personagens de forma impressionante e não deixam a desejar em nenhum momento. Day-Lewis, entretanto, é o maior destaque. O ator incorpora o personagem de Lincoln de maneira genial, sendo, sem dúvidas, um dos melhores aspectos do filme. Não é à toa que o trabalho lhe rendeu o Oscar de melhor ator no ano de 2013 e o Globo de Ouro na mesma categoria.

Em geral, a obra é agradável, de grande valor e apresenta uma produção magnífica, com caracterizações que fazem o telespectador se sentir dentro da trama. Apesar de em alguns momentos ser monótono, devido aos longos diálogos, é interessante e cativante. Sendo assim, vale a pena ser assistido. É importante também, abrir espaço para uma reflexão sobre o assunto abordado na obra de maneira sincera e aberta. Essa é a melhor maneira de reconhecer os problemas que ainda persistem, não só na sociedade americana, mas também na sociedade brasileira. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão nas Américas, em 1888. Os problemas raciais também estão enraizados em nossa sociedade. A arte é uma maneira de propor conhecimento e reflexões

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DA SILVA, João Carlos. Duas Nações Dentro De Uma, 2016.

LEVINE, Bruce. The Fall of the House of Dixie: The Civil War and the Social Revolution that Transformed the South. [S.l.]: 2014.

VILHENA, José Augusto. A Guerra Civil dos Estados Unidos da América. [S.l.]: , 2016. D

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Érica Corado

Estudante de Relações Internacionais na Universidade Federal do Tocantins. Aqui publico textos e insights sobre os assuntos que venho estudando.